Retratos fantasmas e o Cinema como forma de afeto

Uma Análise do filme ‘’Retratos Fantasmas’’ de Kléber Mendonça Filho

Vitor Amoroso
5 min readNov 7, 2023

O Cinema é uma poderosa arma dependendo de qual modo será utilizado. Em Retratos Fantasmas o Cinema é utilizado como uma carta de amor, apaixonada e pessoal de Kléber Mendonça Filho à sua cidade natal, Recife. Começamos o filme sendo apresentados à uma Recife dos anos 60 que ao passar do tempo vai sendo transformada até chegarmos aos dias atuais. São apresentadas filmagens antigas do diretor, diretamente de sua antiga câmera e suas fitas vhs, mostrando primeiramente sua casa, família, vizinhança, lazer e criação. Kléber Mendonça Filho em seu monólogo inicial nos dá detalhes íntimos de sua vida, seu endereço antigo, o nome e a profissão de sua mãe, suas ambições como um cineasta amador, detalhes estes gravados em suas memórias e registrados em vídeo. Detalhes aparentemente corriqueiros e de pouca relevância mas que através de uma câmera se tornam um meio de preservar uma memória especial.

Em Retratos Fantasmas vemos como os lugares que vivemos são uma manutenção de uma memória nostálgica, criando assim uma forte ligação entre a vida real e o cinema. Criando, mesmo que despretenciosamente, uma investigação sobre o amor, o luto, a memória, a história e o tempo. O tempo serve tanto quanto vilão quanto aliado nesta obra, é avassaladora sua capacidade de evocar a solidão, melancolia, tristeza mas também alegria, saudades e nostalgia por algo que vive agora só em registros e em memórias. É dito que Kléber Mendonça Filho ainda mora na casa em que passou sua infância, agora com sua esposa e filhos, sendo assim uma bela maneira de preserver o passado e mantê-lo vivo. Casa esta que foi cenário de seus primeiros filmes, que eram quase que uma extensão de sua vida. Suas primeiras obras amadoras eram filmagens com seus amigos, vizinhos, familiares e é claro, sua casa, sua rua e sua cidade. O cotidiano em união com o Cinema é capaz de se tornar um belo filme.

Foca-se muito na experiência do diretor com esses espaços físicos (o apartamento, as salas de cinema, o centro da cidade), mas de alguma forma isso está sempre refletindo sobre uma vontade universal de explorar outros mundos através do Cinema. O que inclui até o mundo das memórias e fantasmas da casa. Momentos como uma fotografia de um ‘’fantasma’’ em sua sala de estar ou a gravação do latido do cachorro da vizinha que havia falecido trazem consigo a dor da perda e da passagem do tempo, refletido também nos espaços físicos, os apartamentos do seu bairro que vão ganhando grades, portões, a criação de novos prédios, as casas icônicas daquela vizinhança que agora não são mais do que enomres prédios residenciais padrozinados. Há uma perda da inocência infantil através de uma distância que vai se impondo entre esses espaços e um mundo idealizado. Tudo vai se fechando e sofrendo as consequências da realidade e da modernidade. O filme funciona também como uma tentativa de preservar e registrar toda a infância e inocência de um jovem Kléber que, através de registros talvez por instinto ou simples dedução, já intuía que aquilo um dia não mais existiria mais.

Na segunda parte do filme somos apresentadaos às ruas da cidade de Recife, partimos do micro para o macro: da casa de Kléber Mendonça Filho e seu círculo familia para a rua em que morava e seus vizinhos e agora para as ruas fora de seu pequeno mundo.

“- Eu amo o centro de Recife.”

A segunda parte do filme é uma carta de amor aberta do diretor à sua cidade natal.

Aqui temos a inserção do Cinema (tanto o lugar físico quanto a ideia metafísica da forma de Arte) como criador de raízes profundas. A principal lembrança do diretor do centro da cidade era o cinema que frequentou da sua infância à vida adulta. Vemos um formato parecido parecido com o que aconteceu na rua em que o diretor nasceu, agora vemos como lugares icônicos da cidade que marcaram sua infância já não existem mais fora das fotografias, telas e suas memórias. Retratos Fantasmas não é apenas um relato pessoal sobre cinema e memórias, o documentário atua também numa tentativa de pensar sobre as mudanças urbanas e escancarar a decadência e falta de preservação popular, crítica que fica nítica na atenção prestada ao centro deteriorado do Recife e nas vezes em que o cineasta sublinha as transformações na paisagem, como a gentrificação que Recife sofreu e em como as edificações perderam seu ar de liberdade.

O filme também enfatiza o cinema como um agente capaz de contradizer o esquecimento, de evocar os mortos e torná-los presentes através da memória. Kléber olha com atenção e cuidado para vídeos domésticos, fragmentos de curtas e longas-metragens (seus e de outros artistas, o que ajuda a variar os olhares) investigações de detalhes visuais que poderiam passar despercebidos e “conversas” com gente que morreu. Nesta lista há também os cinemas que morreram, onde foram substituídos por igrejas. Fazendo assim uma crítica direta ao poder que as instituições religiosas estão impondo não só em Recife mas em todo o Brasil. Muitas destas igrejas compraram estes cinemas por valores astronômicos para fundar suas filiais. É grave essa crescente perda da cultura e entretenimento.

Chegando ao fim do filme vemos, de uma maneira jocosa, como as marquises dos cinemas de rua antigos interagiam com o ambiente e com a cidade através dos títulos de seus filmes, nomes de atores/atrizes e muitas vezes com letreiros cuidadosamente (ou maliciosamente) pensados para chamar a atenção do público quase como um plano de fundo. Há uma mostra de diversas fotografias de décadas passadas, de moradores recifenses, com o cinema de fundo e com seus letreiros quase como personagens das fotografias, marcadas pelo passar do tempo. Temos aqui uma metáfora interessante de como o Cinema está vivo. É incrível parar para imaginar quanto os cinemas de rua já “viveram”, quantas pessoas já passaram por lá, quantos movimentos sociais eles viram com seus próprios olhos, o quanto de história eles carregam consigo.

Se o Cinema pudesse falar, faltariam livros para escrever suas histórias.

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Vitor Amoroso

Amante da Sétima Arte. Professor de História e algumas outras coisas.